Aos 36 anos, a técnica de segurança do trabalho Aline Cristina Chaves Barboza é mãe de Giovana, de 8, e Davi Lucas, de 1 ano e cinco meses. A diferença é que um nasceu antes, e o outro depois, do diagnóstico de artrite reumatoide. Aline tinha 27 anos na época. “Quando descobri a doença, o reumatologista disse que eu teria algumas restrições e que seria muito difícil engravidar novamente. Isso me assustou. Nem estava pensando em outro filho, a Giovana tinha acabado de nascer, mas tudo aquilo deu um aperto no peito. E se no futuro eu quisesse?”, lembra. Aline não foi a única a ser desencorajada. Outras mulheres com doenças reumáticas já ouviram que seria algo impossível. Mas não é.
Segundo Roger Levy, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e vice-presidente da Sociedade de Reumatologia do Rio de Janeiro, uma série de doenças autoimunes tem frequência maior em mulheres na idade fértil. “O que ocorre é que 20 anos atrás elas eram mais difíceis de ser controladas. A descoberta da síndrome do anticorpo antifosfolípideo (SAF), em meados doas anos 1980, foi um momento fundamental nesse sentido. Foi possível conhecer a causa de tantas mortes do feto intrautero e avançar no tratamento. Hoje sabemos que cerca de 30% a 40% das mulheres com lúpus têm SAF. Ela pode ser encontrada isolada, mas também associada a outras doenças, como a artrite reumatoide e a síndrome de Sjogren.
Roger Levy e outros médicos que vêm se dedicando ao tema estão trabalhando pra ajudar a disseminar os novos conhecimentos em outras regiões, e mesmo no interior dos estados. Muita gente vai aos grandes centros para ter seus bebês em serviços mais experientes. O próximo objetivo é criar um registro, um banco de dados de grávidas com doenças reumáticas. “Temos um comitê, damos apoio a outros médicos, mas ainda é um trabalho de formiguinha. Mudar um conceito em medicina é difícil, demora cinco, dez anos. Com certeza ainda há uma visão muito antiga da gravidez em doenças reumáticas. No consultório, chegam muitas pacientes contando que ouviram de seus médicos que nunca poderiam engravidar. Desfazer essa informação, e o medo que ela provoca, não é fácil. Algumas histórias são absurdas”, lamenta.
Há um estigma, mesmo na classe médica. Um grupo de médicos tem se atualizado e oferecido o que há de mais recente na ciência nesse sentido, com base em evidências científicas. Ainda há muito desconhecimento, e isso é um problema. Uma questão importante está relacionada à medicação mais indicada nesse momento. “Os médicos precisam ter conhecimento de como a hidroxicloroquina é fundamental na gravidez. Muitas vezes, por desconhecimento, chegam a retirá-la do tratamento na gestação por não saberem o que vai ocorrer. E é um remédio barato que não faz mal ao bebê ou à mãe. Pelo contrário, ele fará falta pois pode ajudar no controle do lúpus na gestação”, explica.
Segundo o especialista, muita coisa do que foi ensinado na faculdade nos anos 1970 e 1980 já não vale hoje quando o assunto é gravidez. “O médico que não procurar conhecer o que é novidade na ciência estará praticando uma medicina antiquada e obsoleta”, defende Levy. Mas ele acredita em mudanças em um futuro próximo. “Teremos tratamentos ainda melhores para cuidar dessas grávidas com doenças autoimunes, e diagnósticos cada vez mais precoces. Esperamos educar os jovens médicos e pacientes para que esse conceito errado seja posto de lado. O mais difícil é dar confiança e tranquilidade para que esperem o momento ideal. Planejamento é palavra de ordem.”
EQUIPE MULTIDISCIPLINAR
O acompanhamento multidisciplinar também é fundamental. “Quando uma grávida com lúpus é seguida de perto por uma equipe experiente e segura tende a ter melhores resultados”, acredita o reumatologista Roger Levy. O obstetra Guilherme de Jesus, na outra ponta do processo, defende o mesmo. Também professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Guilherme tem experiência em gravidez de alto risco e em pré-natal e partos de pacientes com doenças reumáticas. Para ele, o alto risco nesse caso é uma estatística. “Elas têm mais chance de uma complicação, mas isso não quer dizer que isso vai acontecer”, explica.
Cuidados especiais são indispensáveis, entretanto. As pacientes, por exemplo, precisam de mais exames e consultas. Se o rastreamento do anticorpo anti-Ro der positivo, serão necessários frequentes ecocardiogramas do bebê a partir da 18ª semana. “A artrite reumatoide, de modo geral, não coloca a paciente em risco. O lúpus pode levar a um comprometimento renal. Já na SAF, elas correm risco de acidente vascular cerebral (AVC), infarto e embolia pulmonar. Se o risco de pré-eclampsia na população geral é de 7%, nas pacientes com SAF é de até 20%. Dentre as três, a SAF tem as manifestações mais graves para a mães. O problema é que muitas mulheres só descobrem o problema depois de perdas repetitivas”, explica.
Obstetra no Hospital Pedro Ernesto, referência em gestação de alto risco no Rio de Janeiro, Guilherme defende uma formação na área. Em geral, os obstetras de alto risco atendem mais pacientes com diabetes e hipertensão durante a gestação. Daí a importância de uma formação ampliada e do acompanhamento conjunto do obstetra e reumatologista. “Há poucos médicos dedicados ao pré-natal dessas pacientes. Na Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) temos um comitê de alto risco, mas já tentamos uma residência na área e não conseguimos. Não há uma formação, não há uma prova de título. Trabalhamos com a experiência”, lamenta Guilherme.
O obstetra também acredita que mais espaço em congressos é essencial para que outros médicos se atualizem e comecem a abordar essas pacientes da melhor forma. “No passado, havia um grande medo da ativação da doença na gravidez. Isso era tido como verdade e contra-indicava a gravidez. Hoje, entendemos mais essa área. Sabemos, por exemplo, que nos dois primeiros anos do lúpus a doença “mostra sua cara”. É melhor esperar esse momento e engravidar depois. Sabemos também que a hidroxicloroquina diminui os riscos de pré-eclampsia e a atividade do lúpus na gestação. Para aquelas que engravidaram sem se preparar para isso, o ácido acetilsalicílico, em doses baixas, também diminui o risco de pré-eclampsia no caso do lúpus e da SAF. Também já sabemos quando antecipar o parto na hora certa, para evitar complicações”, revela.
Tudo isso permitiu uma gravidez bem-sucedida dessas pacientes. Guilherme também acredita que um pediatra nessa equipe multidisciplinar seria ideal. Assim que nascem, são mais comuns as hipoglicemias, a icterícia e as dificuldades respiratórias. O crescimento restrito na gestação pode dar problemas no futuro, então essas crianças poderiam ter um segmento espacial. “Por causa do sofrimento intrauterino, aumentam as chances de diabetes, hipertensão e obesidade”. E para quem atua na área, tem um apelo: “os médicos que não dominam a área, poderiam, pelo menos, não contra-indicar a gravidez ou assustar essas pacientes. Às vezes elas desistem ou adiam a gravidez, e quando descobrem que é algo possível já é tarde. Aí temos algo a mais”, alerta.
Fonte: Sites Uai