Apenas 100 pacientes conseguiram ser reencaminhados para outra unidade; Prefeitura afirma que manterá atendimentos
O Ambulatório Docente-Assistencial de Lúpus da Escola Bahiana de Medicina (Adab) deixará de atender, regularmente, os 900 pacientes cadastrados na unidade. O ambulatório não faz marcações de consultas há alguns meses – as últimas deverão ser realizadas em janeiro de 2018, de acordo com Jacira Conceição, diretora da Associação Lúpicos Organizados da Bahia (Loba), entidade que reúne portadores de lúpus, além de familiares e comunidade médica.
O anúncio do encerramento das atividades será feito, formalmente, na próxima segunda-feira (2) pelo reumatologista Mittermayer Barreto Santiago, coordenador do ambulatório. “É uma grande tristeza ver que resistimos nisso há muito tempo e que agora não tem solução. Fico muito triste em saber que não dá para continuar e que o Estado e o Município não têm como absorver toda a população do ambulatório”, lamenta o reumatologista, que também é professor da Escola Bahiana de Medicina e coordenador do segmento de reumatologia do Hospital Santa Izabel.
A Prefeitura, no entanto, garante que vai manter a unidade funcionando normalmente pelos próximos 90 dias, enquanto são realizadas reuniões para definir o futuro do Adab.
O ambulatório foi fundado há 20 anos no Hospital Santa Izabel, mas após o aumento do número de pacientes, migrou apenas o atendimento para um espaço cedido pela Bahiana.
De acordo com Mittermayer, a falta de estrutura para garantir a internação dos pacientes, a falta de médicos e de recursos para atender a demanda de pacientes são os principais motivos para a suspensão das atividades.
O atendimento no ambulatório sempre foi gratuito, ocorria toda segunda-feira, e chegou a contar com seis reumatologistas. “A gente contava apenas com espaço físico e coração aberto dos médicos e de duas voluntárias”, conta Mittermayer.
A perda de leitos no Santa Izabel também influenciou negativamente a formação de reumatologistas na Bahia. No ano passado, o único programa do estado de residência na especialidade deixou de oferecer vagas por falta de estrutura. “Ano passado, o Santa Izabel teve necessidade de reduzir o número de leitos do SUS para clínica médica de 45 para 18. Nós perdemos a autonomia de cinco leitos para internação e passamos a ter que dividir vagas nos 18 com todas as outras especialidades médicas”, relata o diretor.
Transferência
Por meio de nota, o Hospital Santa Izabel informou que as limitações de recursos do SUS levou a modificações na destinação de alguns leitos reservados aos pacientes. “A estrutura física do Ambulatório SUS do Hospital Santa Izabel não permitia a ampliação do serviço, visto que o local abriga outras áreas de assistência. Hoje, 21 especialidades médicas estão disponíveis para pacientes de todo o Estado, com um volume médio de 250 atendimentos por dia. Por necessidade de ajustes econômicos, motivados pelas limitações dos recursos do SUS, a Santa Casa da Bahia fez modificações na destinação de alguns leitos reservados aos pacientes do SUS”, explica a entidade, em nota.
Ainda segundo o Santa Izabel, “a transferência do atendimento ambulatorial SUS em reumatologia para outra instituição, bem como o cancelamento do Programa de Residência Médica em Reumatologia” no local, “aconteceu por decisão única e exclusiva do médico reumatologista Mittermayer Santiago”.
Segundo o diretor do ambulatório, os médicos recebiam dinheiro do SUS, que era repassado pela Prefeitura a cada consulta. “Eu recebo meu salário de professor, mas os outros médicos dividiam entre si cerca de R$ 1.500 referente às consultas. O dinheiro advindo do SUS era repassado pela Prefeitura à Escola Bahiana. Boa parte dos pacientes eram do interior, a consulta era cortesia e nós sabíamos”, explica Mittermayer. Nos últimos dias, o ambulatório passou a contar com apenas dois reumatologistas.
Ainda conforme Mittermayer, os 100 pacientes que conseguiram ser reencaminhados foram para o Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hospital das Clínicas), porque já possuíam a carteira de atendimento do hospital. Os outros 800, no entanto, podem não ter a quem recorrer, segundo ele. “O Santa Izabel, o Hospital das Clínicas e o Irmã Dulce não têm como receber esses pacientes. A demanda é tão grande que não há como receber pacientes novos”, afirma.
Esperança
Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) informou que o contrato que dispõe sobre os atendimentos reumatológicos é com a Faculdade Bahiana de Medicina e não com o médico e coordenador do ambulatório, “que estaria se desligando do serviço”. “Tratativas estão sendo feitas para viabilizar a continuidade de outros profissionais que já atuam no local, bem como, na busca de outros especialistas regularizados no Cremeb, para que integrem a equipe do ambulatório”, diz o comunicado.
Ainda segundo a assessoria da SMS, uma reunião para debater a situação já aconteceu nesta sexta-feira (29), envolvendo a própria pasta e representantes do ambulatório, “e um segundo encontro está marcado para meado de outubro”.
“O serviço continuará funcionando normalmente pelos próximos três meses (90 dias), quando serão definidos os profissionais que atuarão no local. A Secretaria garantirá a continuidade da assistência à população”, informa a Prefeitura.
Ainda conforme a SMS, esse ano já foram agendados mais de 2.300 consultas com reumatologistas nas três unidades de referência para especialidade da rede municipal. Para os procedimentos no Adab e Hospital São Rafael, informa a SMS, os usuários podem realizar os agendamentos nos locais, apresentando cartão SUS de Salvador, documento de identificação com foto e a requisição médica com a indicação do acompanhamento especializado. Já as vagas para o Multicentro Carlos Gomes são marcadas através do Sistema Vida nas unidades básica do município.
De acordo com o reumatologista, o secretário estadual da Saúde, Fábio Vilas-Boas, ofereceu ajuda através da contratação de dois novos reumatologistas e da concessão de duas bolsas, mas há um problema: “A contratação tá com impasse porque não existem muitos reumatologistas no estado – quando formávamos, era um por ano, e estamos negociando com o governo porque o salário proposto está muito aquém do mercado”, explica Mittermayer.
Incidência
O lúpus é uma doença autoimune caracterizada pela produção de anticorpos e inflamação em diversos órgãos e dano tecidual. De acordo com Mittermayer Barreto, estima-se que acometa até 0,05% da população, não sendo considerada uma doença rara.
O mal é mais frequente na população negra e em mulheres jovens, com idade entre 20 e 50 anos. De acordo com o reumatologista, a proporção de infectados por lúpus é de 9 mulheres para cada homem.
Segundo a Secretaria da Saúde do Estado (Sesab), 7.458 pessoas foram internadas em todo o estado, entre 2014 e 2016, e houve 191 óbitos em decorrência do agravamento da doença.
Demanda
Segundo Jacira Conceição, que é uma das fundadoras do Loba, no ambulatório os reumatologistas são especializados e capacitados para atendimento de pacientes com lúpus. “Eu desenvolvi a doença com 15 anos, mas só aos 40 fui diagnosticada”, conta ela.
A associação tem cadastrados 998 pacientes com lúpus e familiares em Salvador. Jacira explica que as crises dos acometidos pela doença são imprevisíveis e não são regulares. “Agora eu tô bem, mas a qualquer momento posso piorar muito”, conta, justificando a necessidade de tratamento especializado rápido.
Segundo Mittermayer, “o paciente de lúpus nunca recebe alta”. “Assim, o número de pacientes vai se acumulando”, explica ele, ao recomendar que os pacientes precisam fazer consulta com reumatologista mensalmente ou até a cada três meses, a depender da gravidade do caso.
Sobre o lúpus
A causa do lúpus eritematoso sistêmico (LES), como o lúpus é formalmente denominado, ainda é desconhecida, mas sabe-se que fatores genéticos, hormonais e ambientais podem desencadear a doença.
Os sintomas variam de um indivíduo para outro, e a evolução costuma ser crônica. Na maioria dos casos, no início da doença o paciente apresenta dor e inchaço em várias articulações, manchas em partes do rosto que ficam expostas ao sol, o característico formato de “asa de borboleta”, e em alguns casos até queda intensa de cabelo, febre e emagrecimento.
Por causa da multiplicidade de sintomas, o diagnóstico da doença é demorado. Muitos pacientes, diante disso, têm agravamento dos sintomas em decorrência do não tratamento. “Não raramente os pacientes já chegam ao ambulatório precisando de diálise, por causa de acompanhamento não adequado”, conclui Mittermayer.