Arroz com folha de batata doce, chuchu com cambuquira e couve com bertalha são pratos que, facilmente, poderiam estar em um cardápio de restaurante de comida natural, mas que durante a 350ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Saúde foram apresentados como parte de uma inovadora proposta de dietoterapia oferecida a pacientes no Hospital das Clínicas de São Paulo. A primeira RO de 2024 foi realizada nesta quarta-feira (31/1), no pleno do CNS em Brasília, e promoveu um amplo debate sobre os sistemas alimentares e suas repercussões na saúde e no meio ambiente.
No ano em que se comemora dez anos da criação do Guia Alimentar para a População Brasileira e 25 anos da Política Nacional de Alimentação e Nutrição, a Comissão Intersetorial de Nutrição e Alimentação (Cian) do CNS, promoveu um encontro entre nutricionistas pesquisadoras com objetivo de refletir sobre injustiças alimentares e como comida, meio ambiente e saúde estão interligados.
Trabalhando na área hospitalar há 17 anos, a pesquisadora em nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), Weruska Barrios, revela a importância de falar sobre epidemiologia nutricional. “O que estamos oferecendo aos nossos pacientes? Qual a composição e qualidade real da alimentação, entendendo que o paciente está no hospital buscando sua melhora clínica e sua saúde e por que a desnutrição hospitalar é tão presente?” indaga a palestrante convidada, que ressalta a necessidade de estimular essa perspectiva dentro das equipes multiprofissionais.
Neste aspecto, Myrian Cruz, conselheira nacional de saúde e coordenadora da Cian rememora que no final de 2023 a Secretaria de Atenção Especializada à Saúde do Ministério da Saúde (Saes/MS) publicou a Portaria GM/MS Nº 2.862, que excluiu o nutricionista como membro da equipe mínima nas Unidades de Terapia Intensivas (UTI).
Na prática, a qualidade da alimentação deve passar pela escolha de ingredientes pautada na qualidade nutricional que o paciente precisa, olhando para a biodiversidade de alimentos locais que estão disponíveis. “A dieta hospitalar precisa estar inserida no contexto de uma dieta sustentável”, declara Weruska. Outra ferramenta importante é a educação continuada, unindo nutricionistas com produtores locais e estudantes de Saúde, proporcionando a chamada medicina culinária. A articulação com redes de fornecedores da agricultura familiar junto à rede hospitalar também endossa o escopo de mudanças propostas.
O alimentar quilombola
Sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis não são novidade em territórios e comunidades quilombolas brasileiras, como aponta Rute Costa, professora do Instituto de Alimentação e Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Também convidada da mesa, Rute conta que desenhou sua trajetória profissional de pesquisa entendendo que nesses espaços também acontecem produções de conhecimento e perspectivas de saber que vão de encontro à alimentação hegemônica vigente. “Os processos alimentares nos territórios possuem visões integradas entre seres humanos e a natureza, por isso a comida é a alavanca mais forte para se buscar a saúde humana e a relação do homem com a natureza, pensando em sistemas alimentares mais sustentáveis”, afirma.
Citando Maria Beatriz Nascimento, importante historiadora brasileira, Rute explica o conceito de paz quilombola. “O conceito de paz quilombola está associado ao modo de viver que une: conhecer o território, conservar as florestas e águas e produzir alimento. A ideia de paz está relacionada com a natureza, não como um recurso do ponto de vista econômico. Aqui, o alimento tem a ver com paz”, declara.
Pensar em alimentação e saúde a partir de perspectivas afro centradas fazem parte também de um processo de descolonização, ou seja, segundo Rute, uma perspectiva colonial e racista nos faz entender que esses povos de comunidades quilombolas foram se configurando a partir da ideia de fuga e contravenção, como uma tentativa de tomada de poder. “A gente precisa reconhecer que este discurso não é neutro, nos afasta até mesmo de perceber as potencialidades destes lugares e destas pessoas”, finaliza.
Sistemas alimentares contra-hegemônicos na APS
Juliana Casimiro, integrante do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, acredita que a abordagem dos sistemas alimentares tem se tornado mais presente nos contextos nacional e internacional. “Até pouco tempo atrás ouvia-se: vamos incentivar o consumo de frutas, legumes e verduras, e a partir daí tudo ficava a cargo e responsabilidade dos indivíduos”, relembra. “Hoje a gente reconhece que isso mudou e há uma série de atores envolvidos nestes sistemas, desde a produção e armazenamento até o processo de compra e desperdícios”, explica a nutricionista.
Quanto mais processado o alimento, mais complexo o sistema alimentar, por ser baseado no uso de agrotóxicos, sementes transgênicas e tecnologias ainda mais prejudiciais ao seres humano e à saúde ambiental. Na outra ponta, há o sistema alimentar perpetuador de injustiças alimentares. “São nos territórios, onde estão as unidades básicas de saúde, que ocorrem os primeiros contatos com repercussões à saúde causadas pelo sistema alimentar hegemônico, mas precisamos reconhecer que o acesso à alimentação saudável e adequada é dificultado”, diz.
O contexto de aumento de consumo de ultraprocessados está relacionado ao aumento de doenças crônicas e diversos tipos de câncer. Obesidade, fome e desnutrição muitas vezes estão presentes no mesmo território de saúde. “A fome está batendo na porta da Atenção Primária desde a pandemia e essa fome não passou. Políticas públicas estão sendo retomadas, sobretudo em relação à agricultura familiar, mas a fome não passou”, alerta.
Entre 2020 e 2022, o número de brasileiros sob situação de insegurança alimentar saltou de 19 milhões para 33 milhões de pessoas, em um período recorde de liberação de agrotóxicos no país.
Confira a Galeria de Fotos da 350ª RO.
Fonte: Ascom/CNS