“A Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR) e a Comissão de Esclerose Sistêmica (ES) tomaram conhecimento do novo Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) da Esclerose sistêmica, ora em consulta pública, publicado no Diário Oficial da União em 17/03/2022 (CONSULTA PÚBLICA SCTIE/MS Nº 8, DE 16 DE MARÇO DE 2022).
Viemos por meio desta nos manifestar e mostrar nossa preocupação e profundo descontentamento com diversos aspectos do conteúdo deste novo PCDT da Esclerose Sistêmica.
Salientamos que a ES é uma doença rara, com elevado impacto na qualidade de vida e elevados índices de morbimortalidade, sendo dentre as doenças reumáticas autoimunes aquela com maiores taxas de mortalidade (1). A referida comissão, composta por médicos reumatologistas com vasta experiência no manejo de pacientes com Esclerose sistêmica, esclarece que houve avanços importantes no tratamento medicamentoso da ES desde 2017, quando foi elaborado o primeiro PCDT. Esperávamos assim, que esses avanços fossem incorporados ao novo PCDT ora proposto, já que são preconizados em Diretrizes e Recomendações Internacionais (2,3), mas não foram levados em consideração pelo comitê elaborador do novo PCDT. Além de rara, a ES é uma doença com manifestações e evolução
heterogêneas, e os resultados obtidos e apresentados no PCDT não podem ser comparados entre si e analisados de forma superficial, sem adequada avaliação das características da população estudada em cada estudo e os desfechos analisados. Sendo assim gostaríamos de enfatizar nossa não concordância com alguns aspectos do PCDT, conforme segue abaixo:
Manifestações pulmonares: A doença pulmonar intersticial (DPI) é atualmente a principal causa de óbito na ES, com enorme impacto sobre a qualidade de vida desses pacientes (4). Em estudo brasileiro com 947 pacientes com ES, o comprometimento pulmonar foi a principal causa de morte, representando 48,1% de todas as mortes devidas à ES (5). Enfatizamos que o tratamento da DPI na ES teve avanços importantes nos últimos anos e que não é aceitável a não incorporação de nenhum novo tratamento medicamentoso para essa manifestação, sem grave prejuízo ao paciente.
1. Chama a atenção o posicionamento enviesado em relação ao micofenolato, medicamento considerado como opção terapêutica de primeira linha para o tratamento da DPI e manifestação cutânea associada à ES e não recomendado no PCDT ora proposto. Ratificando o emprego do micofenolato de mofetil no manejo da DPI na ES, o Scleroderma Lung Study II foi um ensaio clínico randomizado duplo-cego que incluiu 142 pacientes com ES que receberam tratamento com micofenolato de mofetil (dose alvo de 1500mg 2 vezes ao dia) por 2 anos, ou ciclofosfamida via oral (dose alvo de 2mg/kg/dia) por 12 meses seguido por 12 meses de placebo; os resultados mostraram que ambos foram equiparáveis em termos de eficácia, com melhora significativa nos parâmetros pré-definidos de função pulmonar, dispneia, imagem pulmonar e acometimento cutâneo. No entanto, no grupo da ciclofosfamida, um maior número de pacientes descontinuou prematuramente a medicação e apresentou falha no tratamento, sendo também significativamente mais curto o tempo para interromper o tratamento no braço da ciclofosfamida. Dessa forma, o estudo reforçou a eficácia de ambas as medicações, ciclofosfamida e micofenolato de mofetil, no manejo da DPI na ES, reforçando, no entanto, a preferência pelo micofenolato devido a sua melhor segurança, com melhor tolerabilidade e menor toxicidade (6). Ressalta-se ainda o fato do micofenolato não comprometer a fertilidade das pacientes nem apresentar risco de toxicidade vesical, comparativamente à ciclofosfamida (7).
Ademais, a justificativa de que o uso de micofenolato (de sódio ou mofetila) no tratamento das manifestações pulmonares da ES não consta dentre as indicações aprovadas em bula pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no Brasil não pode mais ser utilizada, já que em 21/03/2022 foi sancionada a Lei nº 14.313 que autoriza o SUS a receitar e aplicar medicamentos com indicação de uso distinta da aprovada pela Anvisa, desde que recomendadas pela CONITEC.
2. O PCDT ora sob consulta pública tem posicionamento também enviesado em relação à azatioprina, tratamento não mais recomendado como de primeira linha para o tratamento da DPI associada à ES (8), como sugerido na página 13, parágrafo 2, do referido PCDT. Salientamos que a recomendação deste PCDT foi baseada apenas em um estudo, com risco de viés alto, com um número pequeno de pacientes (60 pacientes), que mostrou que a azatioprina é inferior a ciclofosfamida, levando à queda significativa da capacidade vital forçada (CVF) e capacidade de difusão de monóxido de carbono em comparação a ciclofosfamida (9). Entendemos que o Brasil é um país com recursos escassos e que a alocação racional e adequada dos mesmos é fundamental. No entanto, a “não disponibilidade pelo SUS”, razão fundamentada diversas vezes no novo PCDT para a não recomendação de medicamentos mais eficazes como o micofenolato, e, por outro lado, a disponibilidade pelo SUS de medicamentos como a azatioprina, não podem fundamentar a recomendação de um determinado tratamento considerado atualmente com eficácia questionável, sem graves prejuízos para os pacientes com acometimento pulmonar associado à ES. A Comissão aqui representada entende que a azatioprina pode ser uma opção de segunda linha, após o uso de outros medicamentos, mas não de primeira linha como sugerido pelo PCDT em consulta pública.
3. Ainda, o novo PCDT da ES elenca quatro artigos científicos para responder à dúvida clínica acerca do uso de rituximabe na ES, sustentado seus argumentos de refuta da droga sobretudo no trabalho já datado de Daoussis et al (10). O documento ignora evidências mais recentes demonstrando o benefício do uso de rituximabe nessa doença, com melhora do espessamento cutâneo e pelo menos estabilização do comprometimento visceral, especialmente da função pulmonar, que posicionam o rituximabe hoje como terapia de resgate para os pacientes que não respondem satisfatoriamente ao uso de micofenolato ou ciclofosfamida (11, 12). Além disso, os resultados do estudo japonês DESIRES (13), ensaio clínico randomizado, duplo-cego, de fase 3, que demonstrou a segurança e efetividade do rituximabe para o tratamento das manifestações cutânea e pulmonar na ES, com melhora significativa no espessamento cutâneo e na CVF, e levou à aprovação desse medicamento pela agência reguladora japonesa, sequer foram discutidos apropriadamente com o devido
rigor e atenção na análise estatística.
4. Quanto ao nintedanibe, não são claras as justificativas para que seu uso não seja preconizado no PCDT em questão. O medicamento está indicado para tratamento da DPI associada à ES, conforme preconizado em bula, com uso aprovado pelas agências reguladoras brasileira (Anvisa, em 2019), norte-americana (Food and Drug Administration – FDA, em 2019), e europeia (European Medicines Agency – EMA, em 2020). O estudo pivotal SENCIS (14) mostrou benefício inequívoco na função pulmonar dos pacientes esclerodérmicos em uso desta medicação, comparados a placebo, resultados confirmados em publicações posteriores (15), sequer consideradas no novo PCDT. Ainda, os efeitos adversos relatados, sobretudo diarreia, levaram à descontinuação da droga em menos de 10% dos pacientes, o que demonstra a segurança do medicamento (16).
5. Não foram consideradas as novas evidências em relação ao tocilizumabe, publicadas em 2020 (17), que levaram à aprovação da droga para uso na ES pelas agências reguladoras norte-americana (FDA) e europeia (EMA). Um estudo controlado, randomizado, duplo-cego, de fase 3, incluiu 210 pacientes com ES, alocados para um braço tratado com tocilizumabe e outro braço com placebo, acompanhados durante 48 meses. Os pacientes incluídos apresentavam ES de início recente, com envolvimento cutâneo difuso, sinais de doença em atividade e aumento de provas de atividade inflamatória. O estudo mostrou que, para esse perfil de pacientes, o tocilizumabe preserva a função pulmonar com efeito significativamente melhor do que o placebo, em que houve declínio progressivo da capacidade vital forçada (17).
6. Ainda, o transplante autólogo de células-tronco hematopoéticas tem sido indicado em todo o mundo como tratamento de formas graves de ES e não foi mencionado no PCDT. As indicações para transplante são o envolvimento de pele difuso com piora progressiva, ou a presença de DPI com piora progressiva (18). Existem três estudos ontrolados e randomizados, mostrando que o transplante é mais eficaz do que o tratamento convencional com ciclofosfamida endovenosa para promover sobrevida de longo prazo, sobrevida livre de progressão da doença e qualidade de vida (18, 19, 20). Como resultados clínicos mais evidentes, observam-se melhora do espessamento cutâneo e pelo menos estabilização do quadro pulmonar após o transplante. Em 2017, a European League Against Rheumatism – EULAR (Sociedade Europeia de Reumatologia), incluiu o transplante autólogo como opção terapêutica para formas graves de ES, com nível de evidência IB e força de recomendação A (8).
Por fim, e não menos grave, o manejo da hipertensão arterial pulmonar, manifestação considerada a segunda maior causa de óbitos em pacientes com ES, foi excluída do novo PCDT. Há apenas uma nota, na página 11: “Em relação à hipertensão arterial pulmonar (HAP), deve-se seguir as orientações de diagnóstico, tratamento e monitoramento preconizados no respectivo PCDT do Ministério da Saúde”. Salientamos que o Brasil é um país com dimensões continentais e que nem sempre o tratamento multidisciplinar está disponível para esses pacientes. Essa Comissão entende que a não incorporação do manejo da HAP no PCDT ora apresentado e a fragmentação do tratamento pode trazer sérios prejuízos ao paciente com ES.
Dessa forma, vimos como imperativa a inclusão do micofenolato (de sódio ou mofetila) como primeira opção de tratamento da DPI e acometimento cutâneo na ES, sob pena de não ser ofertada aos pacientes a principal opção terapêutica para seu tratamento.
Além disso, achamos importante elencar a necessidade de incorporação de outras opções, como rituximabe, tocilizumabe e nintedanibe, além da incorporação das recomendações
de tratamento da HAP neste PCDT.
Sem mais, estamos à disposição para eventuais esclarecimentos.”
Ricardo Xavier – Presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia
Cristiane Kayser – Coordenadora da Comissão de Esclerose sistêmica Sociedade Brasileira de Reumatologia
Carta SBR_PCDT Esclerose sistêmica