Passava das 17h do domingo quando a corretora de imóveis Maria*, 56, ouviu o interfone de seu apartamento tocar. O porteiro avisou: “Chegou um pacote da farmácia”. O saco plástico transparente foi colocado dentro do elevador. Com adesivos da operadora de planos de saúde Prevent Senior, a embalagem continha comprimidos de hidroxicloroquina e de azitromicina, além de vitaminas e zinco.
Gratuito, o “kit cloroquina” foi despachado poucas horas após Maria fazer uma consulta por telefone com um médico da rede, citando dores no corpo e um pouco de febre. Em alguns minutos, o médico sentenciou que era suspeita de covid-19 e disse que a Prevent Senior iria enviar um pacote com medicamentos “em menos de 24 horas”.
A distribuição de um kit com a hidroxicloroquina para casos suspeitos de covid-19 contraria o entendimento do CFM (Conselho Federal de Medicina) em relação à substância. Em abril, o conselho emitiu um parecer no qual orienta, com critérios e condições, a prescrição da cloroquina para casos do novo coronavírus.
Sem questionar sobre doenças crônicas e contra-indicações, e sem a comprovação de que se tratava de um caso de coronavírus —Maria fez o exame de PCR um dia após o contato com o médico—, a operadora enviou o “kit cloroquina” e orientou a paciente para usá-lo em casa. “Eu só tenho um rim, isso não prejudica?”, perguntou a corretora para o médico, que disse não haver problema algum. “Só toma”, disse o profissional, segundo ela contou ao UOL.
Maria disse que, na conversa, o médico afirmou que a droga é eficiente no combate do vírus se utilizada no começo da doença. A informação, no entanto, não tem comprovação científica. Estudos publicados ao longo dos últimos meses mostraram que a substância não é eficaz e ainda pode trazer efeitos colaterais que incluem arritmia cardíaca e morte.
No último final de semana, a OMS (Organização Mundial da Saúde) afirmou que interrompeu definitivamente os testes com a cloroquina, já que a substância não apresentou resultados positivos no combate à covid-19.
Procurada pela reportagem, a operadora não quis comentar a entrega do “kit cloroquina”. A empresa se limitou a dizer que “utiliza diversos protocolos de tratamento para a covid-19, cabendo aos médicos, com o consentimento do paciente e seus familiares, decidirem quais procedimentos são os mais adequados, após avaliação de cada caso”.
Outros casos semelhantes
Nas redes sociais, em grupos que reúnem clientes da Prevent Senior, outras pessoas relataram ter passado pelo mesmo procedimento por parte da operadora.
“Quando passei pela consulta por telefone, o médico disse que [a cloroquina] ajuda a não avançar nas outras fases da doença. A enfermeira, quando eu fui fazer o teste, também me orientou a tomar o medicamento. Quando chegou em casa, eu liguei para uma amiga médica de confiança, que me falou para eu não tomar isso”, conta Maria.
Além dos medicamentos, o kit contém ainda um “receituário de controle especial” assinado por um médico (diferente do profissional que conversou com Maria) com orientações para medicação. “Tomar um cp [comprimido] de 12/12h no 1º dia. A seguir, tomar 1cp ao dia do 2º ao 5º dia”, diz o documento.
Em maio, o UOL revelou que operadoras de planos de saúde, incluindo a Prevent Senior, estavam pressionando seus profissionais a prescrever cloroquina e hidroxicloroquina para pacientes se medicarem em casa. À época, um médico que trabalha na rede afirmou que a “recomendação [para prescrever cloroquina] vem da chefia”.
Sem evidência contra o vírus
O CFM reforça que não há qualquer evidência científica de que a droga tenha eficácia contra o vírus, e diz que as prescrições devem ser estipuladas somente aos pacientes que tenham caso confirmado da doença. No caso do kit distribuído pela Prevent Senior, pacientes que não têm confirmação do vírus recebem as substâncias para se medicar em casa.
Os médicos também são obrigados, de acordo com a resolução do CFM, a “relatar ao doente que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da covid-19, explicando os efeitos colaterais possíveis”, o que também não foi feito pela Prevent Senior.
“Considerar o uso em pacientes com sintomas leves no início do quadro clínico, em que tenham sido descartadas outras viroses (como influenza, H1N1, dengue), e que tenham confirmado o diagnóstico de covid-19, a critério do médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente, sendo ele obrigado a relatar ao doente que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da covid-19, explicando os efeitos colaterais possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso”, diz o parecer do CFM.
Ao UOL, questionado sobre a atuação da Prevent Senior, o CFM afirmou que “não comenta casos específicos para não comprometer sua atuação prevista em lei.”
O Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) disse, em nota, que o uso da hidroxicloroquina fora da indicação da bula (off label, como diz o jargão) “deve levar em conta os riscos e ausência de evidências, discutindo bem a questão com o paciente e seus familiares. Pela falta de evidências, contudo, o médico não pode divulgar o tratamento com cloroquina como eficaz”.
O Ministério da Saúde informou que “até o momento, não há nenhum medicamento, substância, vitamina, alimento específico ou vacina que possa prevenir a infecção pelo coronavírus ou ser utilizado com 100% de eficácia no tratamento”.
A pasta mudou seu protocolo e, apoiada por Jair Bolsonaro, passou a permitir o uso da hidroxicloroquina em tratamento precoce da covid-19, incluindo em gestantes, crianças e adolescentes.
As entidades médicas, no entanto, são críticas ao protocolo do ministério. A SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), por exemplo, orienta a não recomendação “de rotina” das substâncias cloroquina e hidroxicloroquina para tratamentos de covid-19. Para a SBI, a única indicação científica da cloroquina e seus congêneres é de que a substância pode ser prejudicial aos pacientes.
*O nome da personagem foi alterado para preservar sua identidade
Fonte: Uol.