Após atender um mecânico de 42 anos, um clínico geral da Santa Casa de Serra Negra, no interior de São Paulo, postou em sua página do Facebook uma foto em que mostra uma receita médica e a mensagem: “Não existe peleumonia e nem raôxis”.
Ele fazia referência às falas do paciente, que estudou apenas até o segundo ano do ensino fundamental. O deboche rendeu a demissão do médico pelo hospital.
“A gente lamenta porque essa não é postura da Santa Casa. Nossa postura é de respeito e de dedicação às pessoas”, afirmou Margarida Gerosa de Barros Manetti, provedora do hospital, em entrevista ao jornal carioca “Extra”. O Conselho Regional de Medicina abriu uma sindicância para apurar a conduta.
Posteriormente, o médico postou uma outra foto na internet na qual aparece “fazendo as pazes” com o mecânico e pedindo desculpas. Ele também anunciou que fará trabalho voluntário.
De acordo com Ricardo Teixeira, professor de medicina preventiva da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), esse tipo de prática vai contra a ideia de “tratamento humanizado” e não só prejudica a imagem do hospital, mas a própria saúde do paciente.
O que é o tratamento humanizado
O tratamento humanizado é aquele em que o médico entende o paciente como indivíduo, uma pessoa com personalidade e necessidades particulares. O profissional de saúde estabelece com esse paciente um diálogo a partir do momento da investigação sobre a doença à prescrição e aplicação do tratamento ou procedimento.
De acordo com Teixeira, isso é fundamental para que o paciente confie no médico e cumpra as mudanças de hábito que esse prescrever.
“A capacidade de diálogo e de estabelecer uma relação de confiança se tornou imprescindível porque 90% das prescrições médicas são mudanças na vida, da esfera comportamental [como parar de fumar ou evitar certos alimentos, por exemplo]. Tratamento humanizado não é uma questão de bom mocismo, de ser um cara bacana, mas um pré-requisito técnico para que o paciente siga as recomendações” Ricardo Teixeira
Professor de medicina preventiva da faculdade de medicina da USP, em entrevista ao Nexo.
Na opinião do professor, “é difícil definir o que é um atendimento humanizado, mas ninguém tem dúvidas sobre quando passa por um atendimento desumanizado”.
Exemplos de atendimento ‘desumano’
DIAGNÓSTICO INSENSÍVEL
Quando a costureira Edilene Bolkart foi diagnosticada com metástase óssea, ouviu a seguinte frase do médico que a atendeu: “aproveita o teu filho porque você tem pouco tempo de vida”. O garoto, então com nove anos, estava do lado da mãe, segundo reportagem do jornal “Folha de S. Paulo”. Edilene sobreviveu.
PARTO MECÂNICO
O parto também é frequentemente envolto em procedimentos impessoais, padronizados e dolorosos, como repetidos exames vaginais, posição fixa da mãe, jejum, lavagem intestinal, anestesia e uso de fórceps.
Críticos afirmam que muitos procedimentos – com destaque para cesáreas – são desnecessariamente realizados sem que a mãe seja consultada ou informada sobre o que está ocorrendo. Eles servem para acelerar e facilitar o processo do nascimento do ponto de vista médico e do funcionamento do hospital, e não dos pacientes.
A preocupação é com produtividade e o máximo de garantia de que nenhuma complicação vai ocorrer. O relato da veterinária Alessandra Caprara é um exemplo de parto desumanizado. Após ser incapaz de estabelecer um diálogo com a equipe de enfermeiras que a tratava, foi atendida por um médico, que realizou uma cesárea.
“O obstetra não disse nada, colocou os panos, passou algo gelado em mim, me cortou e meu bebê saiu. Trouxeram ele para mim e logo depois levaram embora. Não vi mais meu marido, nem sei quando ele entrou ali. Terminei sozinha, em um quarto, sem nenhuma explicação.” Alessandra Caprara, Veterinária, em depoimento concedido em 2013 ao site M de Mulher.
O que torna médicos ‘desumanos’
A desumanização pode parecer frontalmente contrária à ideia da prática da medicina. Mas quem trabalha cotidianamente no sistema público de saúde relata que se manter envolvido e atento aos problemas individuais de um grande número de desconhecidos não é tarefa simples.
Em entrevista ao Nexo, a estudante do sexto ano de medicina Clarissa Rogel, 25, conta que, durante os primeiros anos de faculdade, teve disciplinas que abordavam o tratamento humanizado.
Mas a partir do quinto ano, quando passou a trabalhar com mais frequência no pronto-socorro ao lado de residentes e professores, viu como é difícil manter o envolvimento na prática.
Ela relata um episódio em que atendeu um paciente de cerca de 30 anos que tinha complicações graves no braço por causa da quimioterapia para o tratamento de câncer.
Às 22h, Clarissa disse que ele teria que fazer um novo exame e que o resultado sairia em três horas. O paciente começou a chorar. Ele não tinha dinheiro e estava desde as 5h fora de casa sem comer. Quando relatou o problema para médicos residentes, a estudante também chorou.
“Eu nunca me imaginei dizendo isso, mas tem um distanciamento que é necessário por conta desse tipo de desgaste. Se você leva esse tipo de problema para casa todo dia, isso afeta a sua produtividade, você não consegue ajudar as pessoas”
Clarissa Rogel,Estudante do sexto ano de medicina.
Como a desumanização se integra à estrutura dos hospitais
O professor Teixeira, da USP, afirma que o debate em torno do atendimento humanizado ganhou força durante os anos 50, no pós-guerra, quando a implementação da tecnologia no atendimento médico atingiu um novo patamar.
A implementação de procedimentos técnicos padronizados em estruturas hospitalares maiores e mais complexas contribuiu para apagar a dimensão humana individual dos pacientes.
O artigo “Um Paciente, não uma Pessoa: o mau hábito de desumanizar pacientes”, da Escola de Administração de Kellog, ligada à Universidade Northwestern, identifica as formas como a desumanização do atendimento se tornou parte da medicina.
Ele foi escrito a partir de pesquisas sobre administração hospitalar realizadas por Omar Sultan Haque, psicólogo e médico da Universidade de Harvard, e Adam Waytz, psicólogo que leciona na Escola de Administração de Kellog.
Do ponto de vista do médico, não encarar um doente como um indivíduo é útil para:
– Lidar melhor com os sucessivos casos de dor, morte e sofrimento com que tem contato – e que muitas vezes são causados ou agravados pelo próprio tratamento.
– ”Desmembrar” os pacientes – em sistema cardiovascular, neurológico, linfático etc – na busca por problemas e permitir o tratamento através das equipes especializadas que compõem os hospitais. A desumanização se integrou à medicina contemporânea.
Desumanização na estrutura da profissão
ENSINO
Médicos aprendem, durante o seu treinamento, a controlar suas respostas à dor alheia. A falta de empatia permite que tenham uma avaliação mais objetiva dos problemas que encontram e sejam capazes de recomendar ou aplicar tratamentos dolorosos, mas necessários.
DESIGUALDADE
De acordo com Sultan Haque e Waytz, pesquisas em psicologia social mostram que pessoas costumam encarar aquelas que são diferentes delas mesmas como menos humanas. A relação de poder entre médicos e pacientes tende a ser desigual e colaborar para que isso ocorra.
O médico está saudável e no ambiente de trabalho ao qual se dirige todos os dias: o hospital. Ele tem conhecimento técnico superior sobre o assunto em questão. No sistema público de saúde brasileiro, o médico também tende a ter níveis socioeconômico e de educação maiores do que os do paciente.
Esse, por outro lado, está doente, em um ambiente e em uma situação estranhos. Ele não entende o que está passando com seu corpo. E, no sistema público de saúde brasileiro, é em geral menos educado e mais pobre do que aqueles que o atendem.
FALTA DE AUTONOMIA
Pacientes em coma, com problemas de cognição causados por doenças associadas à idade avançada ou desnorteados pelo uso de remédios perdem a autonomia para tomar decisões. Isso também contribui para que deixem de ser encarados como indivíduos.
DESINDIVIDUALIZAÇÃO
O uso de uniformes, com os jalecos de médicos de um lado e os pijamas padronizados dos pacientes de outro, faz com que os membros de cada um dos grupos se pareçam menos com indivíduos e mais com uma peça de coletivos distintos.
Aliado à estrutura do hospital, com suas camas e quartos idênticos, esse fator faz com que os pacientes se pareçam, aos olhos dos médicos, como um grupo uniforme, sem características humanas individuais.
Os próprios médicos também compõem um coletivo distinto, e se sentem menos individualmente responsáveis pelos pacientes de que cuidam, afirma o trabalho.
Humor também retrata a desumanização
Em uma esquete do filme “O Sentido da Vida”, o grupo britânico de humor Monty Python é preciso ao abordar a questão. Nela, uma mulher em trabalho de parto assiste apreensiva e assustada enquanto é submetida a uma série de procedimentos mecânicos por uma equipe barulhenta em uma sala repleta de luzes e máquinas incompreensíveis.
Após o parto, o bebê é rapidamente retirado das mãos da mãe enquanto a maior parte da equipe deixa a sala sem dizer uma palavra. “Você pode descobrir tudo sobre o parto quando chegar em casa. Está disponível em [nos formatos] VHS, betamax e super-8”, diz o médico responsável enquanto vira as costas.
Como humanizar o atendimento
Segundo Teixeira, da Faculdade de Medicina da USP, a prática da medicina é extremamente exigente. Mas profissionais de saúde devem estar preparados para lidar com isso, e não há justificativa para desumanizar o atendimento.
Formas de humanização
MEDICINA BÁSICA
De acordo com o professor da USP, cursos de medicina devem ser menos voltados para áreas especializadas, como cardiologia ou neurologia, e mais para atenção primária, ligada à prevenção de doenças.
Isso envolve compreender de forma mais completa o contexto em que os pacientes vivem, o que só pode ser feito através de uma abordagem mais próxima e pessoal. “Você tem que preparar o médico para ouvir e lidar com o sofrimento em geral das pessoas, e não apenas com doenças específicas”, afirma.
REESTRUTURAÇÃO DO ATENDIMENTO
Ele afirma que pressão excessiva, com grande número de pacientes e um sistema de saúde desfuncional impedem que se desenvolva um atendimento individualizado. “Não adianta o cara ter uma formação com valores humanistas se você tiver que atender 20 pessoas em três horas. Você precisa de condições de trabalho que permitam o diálogo.”
UNIFORMES
Sultan Haque e Adam Waytz sugerem alguns experimentos para tornar o atendimento mais humanizado. Para quebrar a dicotomia entre médicos de jalecos e pacientes com pijamas, sugerem abolir o uso de jalecos idênticos entre os médicos.
Ressaltar a individualidade poderia contribuir para um atendimento mais humano.
NOMES
Os pesquisadores sugerem também que médicos tomem o cuidado de falar em voz alta os nomes de seus pacientes, e não apenas suas doenças, ao informarem detalhes dos casos para colegas.
RESPONSABILIDADES
Dar tarefas para os pacientes em unidades de saúde – como aguar plantas, por exemplo – poderia aumentar a sua desenvoltura e ressaltar sua identidade nesses ambientes.
Políticas públicas no Brasil
A discussão sobre a humanização da saúde é particularmente forte no Brasil. Em 2001, o governo implementou o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar.
Para Teixeira, essa preocupação é grande no país porque está na essência da criação do SUS (Sistema Único de Saúde). O documento de apresentação da política pública de 2001 evoca um conceito da Constituição de 1988 e que serviu como base para a criação do SUS. “É direito de todo cidadão receber um atendimento público de qualidade na área da saúde”.
O programa resultou em palestras e workshops visando mudar a cultura do atendimento de saúde no país. Também estabeleceu a Rede Humaniza SUS, um website que concentra material sobre o tema da humanização.
Política Nacional de Humanização do SUS
Em 2003 foi lançada a Política Nacional de Humanização do SUS.
Ela parte do pressuposto de que uma gestão mais democrática de unidades de saúde, na qual os trabalhadores têm maior poder para repensar o seu funcionamento, permitiria criar um atendimento mais humano dos pacientes.
Teixeira admite, no entanto, que essas políticas têm limites: sem verba para contratar quadros, a pressão sobre poucos médicos e a dificuldade para estabelecer diálogo continuam a existir.
Fonte: Nexo Jornal