Iniciativa permite que pessoas com dor crônica atendidas no Hospital Conceição contem suas histórias, umas para as outras, de um jeito diferente.
“Nunca deixe de amar”, “preguiça”, “não fazer nada só”, “rezem pela minha voz”, “te amo”, “INSS o terror”, “o mar”, “bengala”, “salvar algo do fogo”, “frio”, “calor”, “eh você coração?”. Impossível ficar indiferente às palavras soltas, às frases por vezes enigmáticas e aos desenhos bordados em diversas cores na grande toalha de algodão cru. O mosaico de sensações e desejos é resultado da iniciativa Ateliê Jardim de Histórias, que permite que pacientes com dor crônica atendidos no Hospital Conceição, em Porto Alegre, narrem suas histórias, uns para os outros, enquanto deixam suas marcas no tecido.
A iniciativa é uma parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e o Atelier Livre da prefeitura municipal. Em encontros quinzenais, a toalha é estendida e, ao redor dela, os participantes se posicionam. A dinâmica é variável, de acordo com os humores do grupo: há dias em que um único paciente fala, enquanto em outras ocasiões muitos pedem a palavra.
– Nossa produção não é um objeto. Tecemos laços de amizade e saúde. A toalha é um lugar de passagem para a dor – explica Cláudia Bechara Fröhlich, professora da Faculdade de Educação da UFRGS.
Sobre o propósito da atividade, a psicóloga Janniny Kierniew completa:
– A ideia final é estar nessa relação de liberdade que a arte proporciona.
Na última quinta-feira (3), o Ateliê Jardim de Histórias instalou mesas e cadeiras em frente ao Conceição para mostrar o resultado do trabalho aos profissionais e pacientes da instituição de saúde e à população em geral.
Muitos dos bordadores sofrem de fibromialgia, causadora de dor generalizada e persistente que pode também estar associada a outros males, como a depressão e a ansiedade. É o caso de Elisete de Ávila Ribeiro, 52 anos, diagnosticada há seis.
Questionada sobre o que sente, ela diz que “dói tudo que é juntinha”. Tem dias em que a medicação alivia, mas em outros não faz diferença. Na manhã da atividade aberta ao público, Elisete decidiu traçar com agulha e linha a palavra “amor”.– Temos que ter muito amor à vida. Se não tivermos amor à vida, não conseguimos lidar com a dor – falou a paciente.
Maristela Brodt Costa, 58 anos, também tem diagnóstico de fibromialgia. Participar do Jardim de Histórias permitiu que a aposentada encontrasse uma ocupação e uma distração para além do desconforto permanente e da clausura no quarto. Dias antes, havia bordado “Deus”.
Não segue religião alguma, explicou ela, mas tem muita fé. Na quinta, pegou agulha e um rolo de linha marrom e decidiu inscrever a palavra “cansaço”. No entra e sai constante no principal acesso ao Hospital, instrutoras e incentivadoras do Jardim de Histórias abordavam os passantes.
– Querem bordar conosco? – perguntava a enfermeira Nára Azeredo para quem fixava os olhos no pedaço de pano incomum, estendido sobre mesas de plástico e que mobilizava vários pares de mãos.
– Olha que lindeza a nossa toalha! – apontava Cláudia.
Fã do jogador Everton Cebolinha, Antonni do Amaral Bastos, nove anos, que acompanhava a avó, tinha uma ideia fixa no dia seguinte à primeira partida do Tricolor pela semifinal da Libertadores – Grêmio, e foi exatamente isto que bordou, com a ajuda da psicóloga Janniny.
Gessi Bopsin, 65 anos, interessou-se pela movimentação da turma e parou para contribuir. Havia chegado para uma consulta com um cardiologista e teceu um pedido: “Paz”.
– Eu preciso de paz. Agora estou mais calma, mas passei sufoco esses dias – justificou, contando sobre o pavor que sente de tempestades.
– A senhora sabe que a nossa toalha é mágica? – perguntou Janniny, que a assessorava.
Extravasar emoções e compartilhar sentimentos são medidas benéficas para os membros da oficina, como atestou a enfermeira Nára:
– São pacientes de dor carregados de muito sofrimento. Esse trabalho traz tanta vida, tanto significado.
Simone Pellin De Nardi, psicóloga do Serviço de Dor e Cuidados Paliativos, completou:
– É importante colocar o paciente no centro do seu tratamento, como protagonista do seu cuidado. Ele não é só aquele corpo doente.
De muletas, Anselmo Mocelini, 54 anos, participante do ateliê, também chegou especialmente para prestigiar o dia especial de exibição da obra coletiva. Foi ele o autor de uma das frases mais curiosas da super toalha: “Acordei dando gargalhada”. Mocelini contou que, naquela data, sonhara que estava correndo, algo que se tornou impossível há anos por conta da fibromialgia e de um problema severo de coluna.
– O ateliê é uma pílula de alegria – definiu.
Apaixonado por jardinagem, Mocelini teve de abandonar o hobby de mexer com a terra devido à perda de mobilidade:
– Bordar flores foi uma maneira que encontrei de continuar lidando com elas.
Fonte: Gaucha ZH