Giovanna Massera da Silva, de 22 anos, nasceu em Osasco, região metropolitana de São Paulo e aos 12 anos foi diagnosticada com lúpus, uma doença inflamatória de origem autoimune que pode afetar múltiplos órgãos e tecidos. Na pele da estudante de Moda e Fotografia ficaram as marcas da doença e hoje Gioh, como é conhecida, ajuda outras mulheres a lidarem com a autoestima e autoaceitação corporal.
Aos 12 anos fui diagnosticada com lúpus. Até achar a causa do meu problema de saúde foi uma longa jornada, já que o lúpus é uma doença que se mantem “escondida” e só é detectada com exame específico. Antes dos 12 anos, não sentia nada, era uma criança saudável, a doença só se manifestou nessa idade.
Os sintomas iniciais foram dores nas juntas e nas articulações, achei que era gripe ou sedentarismo, porque só fazia exercícios na escola. Depois apareceu febre, chegava ao 40° e ai percebemos que tinha algo muito errado. Passei praticamente um ano indo e vindo de hospitais para a minha casa, até achar um tratamento adequado para o meu organismo.
O principal remédio usado no controle do lúpus é o corticoide, que tive que tomar em grandes quantidades, causando vários efeitos colaterais que marcaram minha pele: inchaço e várias estrias enormes se espalharam pelo meu corpo aos 13 anos.
Isso afetou gravemente minha autoestima, não me sentia uma criança normal, nem mesmo uma pessoa normal. Crescer com lúpus foi uma fase muito difícil, ainda criança tinha que tomar remédios muito fortes que mudaram meu corpo, era privada de fazer muita coisa, por conta da saúde. Não conseguia mais correr ou pular como uma criança normal, passei a minha pré adolescência de cama, sentindo dor diariamente, era insuportável. Não gostava que as pessoas me vissem naquela situação, então eu me isolava dentro de casa.
Era muito dedicada na escola, gostava de estudar, mas não podia sair do quarto, mesmo se estivesse bem, não podia sair do hospital para dar uma voltar, não podia comer a comida da minha mãe, era uma quarentena, todos sabem que é para o bem estar do paciente, mas estar internado é um processo horrível para qualquer pessoa.
Cheguei a odiar hospitais, chorava só por ter que ir em uma consulta, minhas piores lembranças são dos dias em que eu estava na UTI e tive um derrame. Logo no início do diagnóstico fui ensinada a não aceitar que estava doente, questão de fé talvez, então não aceitava tudo que estava acontecendo comigo e ficava frustrada, infeliz na maior parte do tempo, não havia um dia que eu não segurava as lágrimas.
Quando as dores diminuíram e minha saúde começou a melhorar, voltei para a escola, mas a convivência com as pessoas ainda era difícil. Muitas me paravam na rua para perguntar o que aconteceu comigo, por conta da aparência.
Outras crianças e adolescentes faziam bullying, mas também tinha os amigos que se solidarizaram e me ajudavam sempre que eu tinha algum mal estar. A adolescência foi a fase mais difícil, não foi normal como a dos outros. Era privada de fazer muitas coisas por conta da saúde e eu mesma me privava de andar livremente, me isolava.
Quando as marcas apareceram fiquei desesperada, as que apareceram na minha barriga eram cicatrizes enormes e eu tinha medo que surgissem marcas em lugares visíveis e quando surgiu fiquei ainda mais devastada, passei em dermatologistas, mas não tinha nada que diminuísse as marcas sem ser agressivo, não podia fazer cirurgias plásticas porque afetaria o lúpus e poderia piorar minha situação, era uma rua sem saída, eu não sabia como lidar com aquilo e os olhares e perguntas das pessoas pioravam toda situação.
Nessa época escondia cada parte do meu corpo, achava que se ninguém percebesse que eu era diferente, iam achar que eu também era normal. Podia ser verão, um dia com 33°, que eu estaria com roupas compridas e moletom, escondendo cada canto do corpo. Não ia a praia nem piscinas.
E quando acidentalmente alguém via uma das minhas marcas, era obrigada a explicar o que aconteceu e era muito difícil falar sobre tudo que aconteceu, porque eu não queria aceitar. Alguns olhavam com nojo, outros com dó e eu odiava terem dó de mim, porque eu era uma garota forte, que tinha suportado muita dor e mesma assim me chamavam de fraca, por ter uma doença (mesmo que controlada).
Queria apenas ser normal. Me privava de ter uma relação afetiva, porque tinha medo de ser rejeitada pelas marcas que eu guardava. Me sentia uma aberração, por causa da minha aparência e tentava me esconder nas roupas para que ninguém notassem o que eu tinha diferente.
Aos 18 anos me permiti ter experiências que nunca tive, vivências que adolescentes já haviam tido, mas ainda me escondia muito, me sentia outra pessoa e sempre tinha medo que alguém descobrisse meu verdadeiro eu. Mal terminei a escola e eu já estava esgotada de tanta carga emocional.
Percebi que dali pra frente teria que ser eu mesma, mas ainda não estava segura o bastante para fazer tudo de imediato. Me permiti ter um relacionamento mesmo ainda não sabendo como lidar em relação ao meu corpo, sentia um medo absurdo de ser descoberta e tinha que ter uma conversa com a pessoa.
Algumas não se importavam tanto com a aparência, mas outras eram rudes e só queriam me usar. Quando fui usada, cansei de me esconder e tentar agradar o padrão dos outros. Tentei procurar ajuda em psicológicos, mas não conseguia me manter no tratamento, não gostava de ir para as consultas, então lidei com tudo sozinha.
Quando o ensino médio acabou, não consegui uma bolsa para a faculdade e meus pais não tinham condições de pagar e isso piorou minha depressão, me sentia inútil e desqualificada. Quando consegui meu primeiro emprego, ainda sentia mal estar físico e quando descobriram que eu tinha lúpus, me fizeram me demitir, ainda estava em uma situação frágil emocionalmente e aquilo me devastou novamente, ninguém entendia que o fato de eu ter lúpus, não me tornava incapaz.
Quando conhecia alguém, meu maior problema não era contar que eu tinha lúpus, era contar das minhas marcas. Ter lúpus, não era mais um problema, sabia que podia ter uma vida normal, o tratamento estava dando certo e minha saúde estava estável, mas as marcas não mudavam, não sumiam e eu achava elas feias, nojentas, repugnantes e sabia que outras pessoas iam achar o mesmo.
Buscava urgentemente pela aprovação dos outros, mas sabia que não teria por causa do corpo. A ansiedade fazia ser insuportável viver nesse corpo, eu buscava insanamente ter um corpo normal e não existia como, eu sonhava e pensava sempre em simplesmente me trancar em um lugar e cortar a minha pele, na esperança de renascer uma nova, uma normal.
Aos 19 anos estava cansada da minha situação e das pessoas, não havia futuro para mim se eu continuasse daquela forma. A ficha caiu, não adiantava, não ia mudar, estava cansada por mim e sabia que não era a única que também estava numa situação horrível, então decidi que precisava falar, por mim e por outras mulheres.
Estava farta, foi quando comecei o processo de auto aceitação, porque ninguém iria me aceitar 100% como sou, só eu podia, pois só eu me entendia e sabia o que era estar na minha pele. Comecei a expor nas redes sociais o que aconteceu com meu corpo e minha experiência com o lúpus e fui ouvida, e vi que muitas pessoas também tinham sua história pra contar.
Eu não estava mais sozinha, sentia que precisava ajudar e nisso eu me ajudei. Eu me forcei a mostrar pro mundo que meu corpo era diferente, mas também era normal, porque tinham tantas mulheres, com corpos diferentes, mas não tinham espaço pra mostrar. Criei um espaço para mim, ainda hoje as pessoas olham, eu sei disso, mas não percebo mais, porque estou ocupada tentando aproveitar os momentos bons que tenho agora, depois de tantos ruins que vivi.
Diariamente recebo mensagem de seguidoras pedindo ajuda de como se aceitar. A resposta está nelas mesmas, mas tem que estar disposta a abrir mão da vida antiga, abrir mão de pessoas e pensamentos destrutivos, aquele namorado, que te chama de gorda e burra, aquela mãe que te chama de vadia, aquele amigo que diz que você é uma pessoa ruim e como fazer isso? Todo mundo sabe como, mas quase ninguém consegue sair de coisas abusivas, porque tem medo do depois, mas o depois é inevitável.