Relatório apresentado tenta firmar um cálculo que avalia o benefício e o custo de tecnologias para determinar (ou não) sua inclusão no sistema de saúde público brasileiro. Mas há incertezas no documento que preocuparam pacientes e especialistas
Por Juan Ortiz, da Redação AME/CDD
Em 20 de junho, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) publicou um relatório com “recomendações” para estabelecer um limiar de custo-efetividade na inclusão de novos medicamentos, exames e procedimentos na saúde pública. A partir de parâmetros estabelecidos, o mecanismo visa calcular a relação entre o preço da tecnologia e o ganho que ele traz à saúde dos pacientes – e, a partir de um limiar, estipular se o Estado deveria pagar essa conta.
Acompanhado de uma consulta pública (a CP 41) aberta até 1º de agosto, o documento levantou uma série de questões e acendeu o alerta de médicos, pacientes e outros setores do segmento de saúde. Diante das incertezas e com o objetivo de contribuir nessa consulta pública, as ONGs AME e a CDD convidaram diferentes atores da área para uma reunião no dia 20 de julho, em São Paulo.
Organizado sob a bandeira do movimento A Regra é Clara e com apoio da Origin Health e da MIT Technology Review Brasil, o evento durou cerca de três horas e consolidou as opiniões de membros da sociedade civil e da indústria a respeito do relatório da Conitec.
Alguns participantes expressaram preocupação de que o limiar pudesse se transformar no único ou no principal critério de análise para incorporação de tecnologias no setor público, o que restringiria o acesso principalmente a procedimentos mais custosos. E apontaram a falta de definição para as doenças menos prevalentes, cujos tratamentos podem alcançar cifras elevadas.
“Até o momento não entendemos como isso vai afetar as doenças raras. Vejo uma tentativa de limitar o acesso dentro do Sistema Único de Saúde”, disse logo no início do encontro Antoine Daher, fundador e presidente da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas).
Gustavo San Martin, fundador e diretor executivo da AME e da CDD, reconhece o ponto positivo de analisar possíveis métricas objetivas para a incorporação de tratamentos no SUS. “Essa consulta pública pode ser um ponto de partida. Mas tão urgente quanto definir um ponto de partida é entender que, enquanto não criarmos algo ideal para todos os pacientes, estaremos deixando os raros de fora”, pontuou.
Modelo britânico prevê limiar maior
O objeto do relatório – o limiar de custo-efetividade – envolve equações complexas, que variam de país para país, a depender do critério de cada um. Os membros da Conitec embasaram seu parecer em estudos da Argentina e do Reino Unido, que estipulam possíveis tetos de gastos para tratamentos integrados ao sistema público de saúde.
Para converter e ajustar os valores máximos, os técnicos brasileiros escolheram o Produto Interno Bruto por habitante (PIB per capita), hoje na faixa dos R$ 40 mil, como unidade máxima de referência. A razão final desse cálculo mostra – ou deveria mostrar – qual é o limite que um país como o Brasil considera razoável pagar por cada medicamento, insumo ou ferramenta preventiva usada por um paciente ao longo de um ano.
A ideia de adotar esse modelo não é nova, mas ganhou força entre os integrantes da comissão após uma oficina em 2019 realizada em conjunto com o Instituto Nacional para Saúde e Cuidados de Excelência do Reino Unido (NICE, na sigla em inglês). A agência britânica adota, como limite, a faixa de 20 mil a 30 mil libras (R$ 130 mil a R$ 190 mil) para cada ano de vida em bom estado de saúde que uma pessoa “ganha” com aquele tratamento, ou QALY na sigla em inglês. Essa métrica para estabelecer o benefício das tecnologias também está na proposta da Conitec
Para doenças raras, os britânicos entendem que o limiar pode ser de cinco a dez vezes maior. Enquanto isso, no Brasil, o novo relatório propõe que essa flexibilização seja de até três vezes o teto – ou seja, R$ 120 mil por cada ano de vida em bom estado de saúde, se a referência for de um PIB per capita.
“Não temos muitas dúvidas ao analisar tecnologias mais efetivas e baratas [que serão sempre incorporadas], e nem quando são mais caras e menos efetivas [que serão sempre negadas]. Nossas incertezas estão nas tecnologias que trazem benefícios, mas são mais caras”, disse em um congresso de 2021 o bioestatístico Ivan Zimmermann, professor da Universidade de Brasília e um dos responsáveis por coordenar os trabalhos a respeito do tema dentro da Conitec.
Esses são justamente os pontos que dizem respeito às doenças raras: o custo alto para tratamentos inovadores, sem referencial para comparação de preços e com impacto considerável no orçamento. E também a dificuldade de se adequar a métricas como o QALY.
Mesmo sem a incorporação de um remédio pela Conitec, pacientes podem obter liminares na Justiça que obrigam a administração pública a fornecer o tratamento – o que implica em despesas inesperadas e sem prévia negociação com as fabricantes, gerando custos ainda maiores para o sistema. Esse é o caminho dos aproximadamente 8 mil brasileiros diagnosticados com atrofia muscular espinhal, uma doença genética rara que interfere na produção de uma proteína crucial para que o cérebro execute movimentos simples como respirar, engolir e se mexer. O único tratamento para essa condição é um fármaco que custa em torno de R$ 6,5 milhões.
Na reunião do movimento A Regra é Clara, os participantes também discutiram o aspecto orçamentário. A diretora executiva da consultoria Origin Health, Camila Pepe, destacou que “não adianta discutir limiar isoladamente sem olhar para o impacto orçamentário”. O sanitarista e consultor de saúde Mario Moreira observou que “a saúde no Brasil nunca foi vista como investimento; é vista como custo, despesa”.
Antoine Daher criticou a falta de aportes do poder público para melhorar o atendimento de cada paciente: “Temos que mostrar para o governo que gastar em novas tecnologias não é jogar dinheiro fora, é investir nessa nova era. Se querem limitar o investimento, vamos continuar tomando Novalgina para dor de cabeça pelo resto da vida, enquanto países de primeiro mundo vão ter medicamentos específicos para cada tipo de dor.”
Especialista aponta necessidade de revisão periódica
Um estudo publicado em 2018 pela Universidade Federal da Bahia indica que as despesas públicas com saúde em países desenvolvidos como Reino Unido, Espanha e Portugal equivalem a mais de 6% do PIB anual – no Brasil, por outro lado, ficam em apenas 3,8%.
Em uma live no início de julho, a epidemiologista Marisa Santos, do Instituto Nacional de Cardiologia, falou em nome da Conitec sobre os desafios para integrar tecnologias onerosas ao SUS: “Ao incorporar um medicamento novo, de algum lugar você vai tirar esse dinheiro. Nosso orçamento é fixo, como um cobertor curto: você tira de uma área para colocar em outra”.
Santos frisou que o limiar definido pela Conitec não será o único critério para que uma tecnologia seja incorporada. E mencionou haver uma categoria de remédios que ficou de fora desse limite de preços. “Medicamentos para doenças ultrarraras não estão incluídos na decisão, embora também ache importante que tenham um referencial. Os preços das medicações para essas doenças estão gerando uma distorção no mercado”, avalia.
Para Tiago Farina, advogado sanitarista e consultor em advocacy, a questão do limiar deve ser tratada como um ponto de partida, e não como uma barreira final. Ou seja, o que alcançar o limiar seria aprovado para incorporação sem muito debate ou burocracia. Já tecnologias que não alcançarem esse limite deveriam ser discutidas, inclusive com a participação da sociedade, para verificar se valem a pena.
“Pode ser que uma tecnologia não cumpra o limiar, mas traga outros benefícios para sua vida”, observa. Por isso, sugere que sejam usados “algoritmos acessórios” que ajudem na tomada de decisão.
Além disso, ele defende que haja um momento definido de negociação com a indústria dentro do processo de avaliação – já que um dos objetivos do limiar de custo-efetividade é obter melhores preços e condições para tratamentos.
Assim que a consulta pública sobre o tema for encerrada, a comissão vai estudar as contribuições recebidas e incluir as que considerar mais pertinentes para a redação final do relatório. “Como é um assunto complicado, acho que deveria ser reanalisado automaticamente daqui a um ou dois anos”, avalia Farina.
A Conitec, no entanto, entende que o limiar sempre será atualizado pelo valor do PIB e, até o momento, não prevê qualquer mecanismo de revisão.
Após o encontro do movimento A Regra É Clara, um documento das entidades AME e CDD será redigido com uma contribuição completa para a CP 41.
Fonte: Assessoria de Imprensa