Diagnosticado há 17 anos com leucemia mieloide crônica (LMC), o aposentado Adeildo Rodrigues, de 71 anos, precisa do medicamento mesilato de imatinibe para viver. Um comprimido de 400 miligramas por dia mantém controlada sua doença e garante a qualidade de vida. No entanto, em novembro do ano passado, foi interrompida a manutenção contínua do seu tratamento na Fundação de Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco (Hemope), no Recife – uma das unidades de saúde que atendem pacientes deste tipo de câncer no estado.
O motivo é que o Ministério da Saúde (MS) deixou faltar em todo território nacional o fármaco usado em casos de LMC e de outros tipos de leucemia, ocasionando em um quadro grave de desabastecimento do insumo e deixando desassistidas milhares de pessoas. O Governo de Pernambuco não recebe a medicação desde outubro.
Morador da cidade de Paulista, na Região Metropolitana do Recife (RMR), Adeildo já sente os efeitos da suspensão do uso do remédio na saúde. “Isso me afeta diretamente. Dá muita fraqueza nas pernas, dá dores nas articulações e tira o apetite. A gente fica sem vontade de comer”, relata.
Mas o medo principal é, sem dúvidas, de uma evolução da doença. “Se eu não tiver o medicamento, a leucemia mieloide crônica avança para a fase aguda, que é praticamente terminal. E da aguda para o óbito é a coisa mais fácil de acontecer. O LMC é uma doença que a gente recebe medicamento para cuidar em casa, mas, se custar muito [para liberar] essa medicação, daqui a pouco o próprio Hemope não vai ter como colocar todo mundo lá na enfermaria”, afirma.
Alto custo
O mesilato de imatinibe é um medicamento de alto custo que, com a aposentadoria de um salário mínimo, Adeildo não consegue pagar. O rótulo original é o Glivec 400 miligramas, da farmacêutica suiça Novartis, e uma única caixa sua com 30 comprimidos chega a custar R$ 17 mil. Os genéricos, por sua vez, podem ser encontrados por valores de R$ 1,3 mil a R$ 2 mil, mas é um preço que continua inacessível para quem vive no piso salarial. “Não tenho a mínima condição de comprar nem mesmo o genérico”, comenta.
Há um mês, Adeildo adotou uma nova rotina – ele sai de casa todos os dias às 6h para ir ao Hemope, próximo ao bairro do Derby, no centro da capital pernambucana, em um percurso que leva dois ônibus e aproximadamente 2 horas. Seu objetivo é encontrar e mobilizar outras pessoas que também estejam com a falta dos remédios.
“Tem gente muito pior que eu. Tem pessoas de cama, muitas na enfermaria que eu vou visitar. Elas são o meu espelho de amanhã. De minha parte, quando eu entro lá e vejo centenas de pessoas espalhadas, deitadas pelos bancos, debilitadas, fico triste, sentindo a dor do outro. Não é fácil”, constata.
Os pacientes que se engajaram e formaram uma rede para se apoiarem mutuamente e para cobrar uma ação dos entes responsáveis. No último dia 21, o grupo se reuniu em frente ao Hemope em protesto direcionado ao Governo Federal. “Ele não fez a licitação do medicamento na época correta. Além disso, não se trata apenas do remédio para as pessoas com leucemia; tem muitos hospitais de câncer no Brasil que estão sucateados”, expõe.
Pacientes racionam o medicamento
Sem o fornecimento do SUS, Adeildo e os demais pacientes têm tentado manter o tratamento por meio de doações de comprimidos e racionando doses para durarem mais. Soluções longe do ideal, porém a única aparentemente possível em meio a uma situação de vida ou morte.
Foi assim com a aposentada Rozeli da Silva Bezerra, de 47 anos, que há 19 anos é tratada com o imatinibe para a leucemia. “Quando eu vi que estava faltando (no Hemope), comecei a tomar o remédio que eu tinha dia sim, dia não”, relata. Seu estoque acabou há pouco mais de dez dias, mas Rozeli recebeu no último dia 25 a doação de 10 comprimidos de outro colega.
Frente à escassez do medicamento nas farmácias do Governo, ela define: “é uma sensação de descaso, de que nossa vida não tem importância”.
Sentimento que é compartilhado pelo comerciante Emanoel Josivan de Vasconcelos, 40. “Eu fui ao Hemope no começo de novembro. Quando cheguei lá, a moça da farmácia disse que estava faltando e não tinha previsão de chegada. Isso abala completamente. Além de ter esse problema muito sério [a leucemia], tem a angústia de ter falta de medicamento”, descreve.
Residente do município de Bezerros, no Agreste de Pernambuco, Emanoel viaja 120 km pelo menos uma vez a cada três meses para ser atendido na unidade de saúde, para onde foi encaminhado em 2017, quando obteve o diagnóstico de LMC. “No caminho, já fico pensando: será que vai ter? Será que não vai?”.
“A gente sente que é um descaso muito grande com a população. Só no Hemope são 250 pacientes que fazem tratamento com esse medicamento. Ainda tem os pacientes de outros hospitais, como o Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira e Hospital Universitário Oswaldo Cruz (IMIP e HUOC, ambos no Recife), e os governantes não tomam providência para agilizar”, reclama o comerciante.
Emanoel foi um dos pacientes do grupo que entraram com processo contra o Estado de Pernambuco e o Hemope para exigir a compra emergencial do mesilato de imatinibe. No despacho do último dia 11, o juiz Murilo Borges Koerich da 1ª Vara da Comarca de Bezerros decidiu em favor de Emanoel, dando um prazo de 5 dias para que o Estado de Pernambuco fornecesse a medicação e determinando bloqueio de conta caso a resolução não fosse cumprida. Entretanto, o paciente diz ainda não ter recebido remédio.
Questionada, a Secretaria Estadual de Saúde (SES) de Pernambuco disse já ter dado início ao processo de compra e que está acompanhando o caso por meio do Núcleo de Ações Judiciais. “É importante salientar que a aquisição dos medicamentos no setor público, mesmo se tratando de uma medida judicial, precisa seguir todos os trâmites legais da administração pública. Todas as ações estão sendo realizadas para, assim que o processo for finalizado e a SES-PE estiver de posse do insumo, o paciente seja informado sobre a retirada do medicamento”, completou, em nota.
Ministério da Saúde não tem data para regularização
Casos em todo o Brasil vêm sendo monitorados pela Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale), ONG que representa pessoas com doenças no sangue e seus familiares. Melissa Pereira, enfermeira especialista em Oncologia e gerente de Apoio ao Paciente da Abrale, conta que os relatos de falta de medicamentos começaram a surgir em alguns estados em julho do ano passado.
Na ocasião, a entidade entrou em contato com secretarias estaduais, acionou Ministério Público Federal e mandou ofício ao MS, mas não teve retorno. Em dezembro, as notificações do desabastecimento do imatinibe se intensificaram, vindas de estados como Pernambuco, Ceará, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Bahia, Rio Grande do Norte, Goiás e Distrito Federal.
“Em janeiro, voltamos a acionar o MS, enviamos novamente ofício a eles, entramos em contato por telefone, e ficaram de dar resposta até semana que vem. No dia 12, foi feita uma compra do imatinibe pelo Ministério da Saúde, saiu no Diário Oficial, porém ainda não temos previsão de quando irá chegar na mão do paciente”, pontua. A cobrança agora é pela data exata em que isso vai acontecer. “Deram até um mês e meio para que isso seja entregue nos hospitais e nas farmácias, mas estamos falando de vidas, de pessoas que estão há muito tempo sem medicamento e não podem ficar esperando esse tempo indeciso. É um direito do paciente ter acesso a seu tratamento”, acrescenta.
Procurada para dar entrevista, a Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH), que representa profissionais e instituições de saúde, optou por não se posicionar com porta-voz “por se tratar de problemas políticos”.
Em resposta, enviou nota conjunta com a Sociedade Brasileira de Transplante de Medula Óssea (SBTMO) em que “solicita publicamente às autoridades regulatórias a máxima urgência e atenção ao cenário para que centenas de pacientes não tenham seus tratamentos impactados pelo trâmite logístico e burocrático”.
Médico critica sugestão de Pernambuco de migrar o tratamento
O dano à saúde de quem teve o tratamento interrompido é classificado como gigante pelo médico onco-hematologista Breno Gusmão, integrante do Comitê Médico da Abrale. “Os pacientes que não receberem o imatinibe e continuarem assim correm o risco de entrar uma recaída. Pode ser que ela seja branda ou seja agressiva, não podemos garantir. O risco que corremos ao deixar o paciente sem tratamento é muito grave e desnecessário”, afirma. Uma recaída grave poderia gerar uma crise blástica ou uma crise de leucemia aguda, fazendo com que o paciente tenha que passar por quimioterapia e transplante de medula óssea.
O Brasil de Fato Pernambuco procurou o Ministério da Saúde para elucidar o motivo do desabastecimento, contudo, não teve retorno até o fechamento da matéria. Já a Superintendência de Assistência Farmacêutica de Pernambuco se posicionou por meio de nota, reforçando que o abastecimento e entrega do mesilato de imatinibe é uma responsabilidade do MS. “Dessa forma, o Estado fica responsável apenas pela distribuição às unidades hospitalares de alta complexidade que são habilitadas para realizar este tipo de tratamento. Desde o mês de outubro, Pernambuco não recebe nenhuma quantidade do insumo”, informou.
A superintendência ainda afirmou que “as unidades que realizam o tratamento estão orientando seus pacientes a procurarem seus médicos e avaliarem a migração de tratamento, como segunda alternativa, incluindo outras opções terapêuticas para que não fiquem desassistidos”.
Entretanto, o médico Breno Gusmão discorda da recomendação: “Não tem que jogar o paciente de volta para o médico para encontrar uma saída. A saída é ir atrás de fornecedores que possam manter o abastacimento”, defende. Ele explica que o mesilato de imatinibe é considerado uma droga de primeira linha; ou seja, é o primeiro medicamento que é usado quando é feito o diagnóstico de LMC. Na segunda linha, há outros insumos, a exemplo do dasatinibe. “A gente faz essa troca habitualmente quando o paciente não está respondendo à droga ou tem efeitos colaterais que não permita ficar tratando com ela”, afirma.
O médico ainda levanta que tampouco há garantias de que os outros remédios não terão efeitos colaterais no paciente. “Vamos arriscar mudar para todos e arriscar a não-resposta ao tratamento e os efeitos colaterais a um paciente que recebe há 17 anos o imatinibe sem nenhuma intercorrência? É um pouco temerário”, acrescenta. Ele conclui ponderando que a decisão elevaria os custos. “O governo está preparado para a mudança de todos os tratamentos (de leucemia) no SUS?”, questiona.
Fonte: Brasil de Fato Pernambuco/ Edição: Vanessa Gonzaga