As doenças autoimunes são aquelas em que o sistema imunológico ataca as estruturas do próprio organismo. “Seria como se o sistema de segurança de um condomínio começasse a reconhecer um ou outro morador como agente invasor. Então, o organismo monta uma resposta imunológica para expulsá-lo, o que acaba provocando lesões nos tecidos ou nos órgãos em que se encontram essas estruturas”, explica Ricardo Xavier, médico reumatologista e presidente da SBR (Sociedade Brasileira de Reumatologia).
Simone Appenzeller, médica reumatologista e professora de reumatologia da FCM (Faculdade de Ciências Médicas) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) relata que a partir do funcionamento incorreto, o sistema de defesa do organismo considera os próprios tecidos como elementos estranhos e produz anticorpos anômalos —chamados também de autoanticorpos— ou células imunológicas que vigiam e atacam determinadas células ou tecidos.
“A resposta é denominada reação autoimune e resulta em inflamação e dano tecidual. Muitas pessoas produzem quantidades tão pequenas de autoanticorpos que não chegam a desenvolver uma doença autoimune.”
Genética e fatores ambientais
São mais de 80 doenças autoimunes que afetam de 5% a 8% da população mundial. “A artrite reumatoide acomete de 0,5% a 1%. A psoríase tem uma prevalência estimada em 2% a 3%, sendo que 30% apresentam o envolvimento articular, conhecido como artrite psoriásica. Menos frequentes, estão o lúpus eritematoso sistêmico e as espondiloartrites”, elenca Isabella Vargas de Souza Lima, médica reumatologista do Hupes (Hospital Universitário Professor Edgard Santos), de Salvador.
Algumas dessas manifestações ocorrem em apenas um determinado órgão. É o que acontece com o diabetes mellitus tipo 1 que, comumente, acomete crianças, cujo órgão alvo dessa resposta imunológica alterada é o pâncreas.
“O sistema imunológico ataca as células que produzem a insulina e o indivíduo fica incapaz de produzir insulina pelo resto da vida e, por isso, tem que tomar injeções para sobreviver”, esclarece Xavier.
As tireoidites —inflamações da glândula tireoide que provocam excesso ou falta de produção de hormônio— também são exemplos de anomalias em apenas um órgão.
Existe ainda o grupo dos distúrbios sistêmicos, que prejudicam tecidos ou estruturas presentes em vários órgãos ao mesmo tempo. “A artrite reumatoide envolve as articulações e diversos outros tecidos como os olhos. O lúpus é o exemplo mais típico de doença autoimune sistêmica porque lesiona, praticamente, todos os órgãos do corpo”, afirma Xavier.
A frequência das patologias de uma forma geral reflete aspectos relacionados às questões genéticas de uma população associadas a fatores ambientais. Sabe-se que as doenças autoimunes têm correlação com fatores genéticos com maior ocorrência em famílias que possuem casos.
“Elas, geralmente, acometem mais de um membro na família, embora nem sempre seja a mesma doença. A maioria é de padrão de herança complexo, ou seja, não passa diretamente de pai para filho”, expõe Appenzeller.
Xavier explica que a participação genética é múltipla e que são muitos genes que participam desse risco, juntamente com os fatores ambientais —exposição a agentes físicos como a luz solar e o tabagismo—, que podem ser incitadores desse desequilíbrio em uma pessoa com a predisposição genética. Na maioria das vezes, as causas são desconhecidas.
As mulheres apresentam risco duas a três vezes maior de desenvolver doenças autoimunes, envolvendo, provavelmente, fatores hormonais, que aumentariam a suscetibilidade de desequilíbrio no sistema imunológico. Em relação à idade, elas ocorrem em todas as faixas etárias, incluindo crianças.
Diagnóstico é complexo
No início, os sintomas são muito inespecíficos e similares a outros distúrbios, como infecção, febre baixa, fadiga, dor articular e manchas no corpo, por isso o diagnóstico representa um desafio até mesmo para especialistas.
“A natureza sistêmica das patologias, sintomas comuns a outras doenças, bem como a necessidade de interpretação crítica dos resultados de exames dificultam muitas vezes a identificação. A prática da reumatologia exige uma avaliação individualizada, com cuidadosa interpretação de resultados de exames de sangue e de imagens, sempre no contexto clínico de cada um”, elucida Lima.
Qual especialista procurar?
A especialidade médica dependerá do órgão comprometido. O reumatologista acompanha doenças autoimunes reumatológicas que são, muitas vezes, as que acometem mais de um órgão.
De acordo com o tipo e a manifestação, o acompanhamento com endocrinologista, hematologista, nefrologista, neurologista, oftalmologista, entre outras especialidades, são necessários.
“O médico reumatologista é o responsável pela avaliação do estágio e da intensidade da doença reumatológica, assim como o histórico do tratamento e a existência de comorbidades que poderão gerar efeitos adversos na utilização de um biofármaco (medicamento que utiliza microrganismos ou células modificadas geneticamente)”, explica Appenzeller.
É possível que uma pessoa conviva com uma doença autoimune durante muito tempo sem diagnóstico. Isso se deve a alguns fatores: natureza sistêmica envolvendo órgãos diversos e não somente o osteoarticular, universalmente, conhecido como aquele acometido nos casos de reumatismo.
“Com isso, uma pessoa que apresenta lesões de pele ou inflamação ocular raramente irá buscar assistência de um reumatologista. Será visto por outros especialistas até que seja direcionado à avaliação reumatológica. Outro aspecto que leva à demora é a falta de acesso aos serviços especializados”, descreve Lima.
Quais os tipos de tratamento?
Não há cura e, sim, remissão da doença autoimune. Dependendo do tipo, o controle ocorre até sem medicação, porém o tratamento é a longo prazo.
Os especialistas afirmam que houve uma evolução importante no tratamento reumatológico, nos últimos anos, representando em mais conhecimento sobre a fisiopatologia das doenças.
“À medida que avançou o conhecimento dos processos imunológicos envolvidos, desenvolveram-se novas estratégias de tratamento: além de aliviar sintomas, foi possível evoluir modalidades de intervenção que modificam o curso natural da doença, evitando-se danos permanentes, mantendo a funcionalidade e qualidade de vida”, afirma a médica reumatologista do Hupes.
Para o presidente da SBR, o entendimento do funcionamento da resposta imunológica permitiu reestabelecer o equilíbrio perdido, controlar os efeitos do dano gerado e a resposta inflamatória.
O Brasil já tem medicamentos imunobiológicos aprovados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para tratamento de artrite reumatoide, artrite idiopática juvenil, espondilite anquilosante, artrite psoriásica e psoríase.
“Os remédios atuam na indução da remissão clínica, redução da inflamação e na progressão de danos articulares estruturais e funcionais”, explica Appenzeller.
Expectativa de vida
Algumas delas com caráter inflamatório diminuem a expectativa de vida. “A artrite reumatoide, uma das mais frequentes, reduz entre 7 e 15 anos de vida, se não tiver esse processo inflamatório controlado. Existem algumas muito graves e que, em poucos dias, levam a óbito, caso não seja instituído um tratamento rápido. Outras já não impactam a sobrevida, como o vitiligo”, pontua Xavier.
O acompanhamento psicológico é importante para ajudar a aceitação e a adesão ao tratamento, considerando-se a prevalência em jovens e o curso crônico em evolução, apesar de todo o avanço. “Hábitos de vida saudáveis permanecem como pilares essenciais no tratamento”, conclui Lima.
Doenças autoimunes mais prevalentes
- Alopecia areata
Provoca a queda de cabelo com maior incidência em jovens abaixo dos 20 anos. Doenças como lúpus e vitiligo e alterações na tireoide também podem ter relação. Área do corpo afetada: as células ao redor do folículo capilar o atacam e impedem a produção de novos fios no couro cabeludo, barba, cílios e sobrancelhas. Sintomas: perda brusca de cabelos, com áreas arredondadas, únicas ou múltiplas.
- Artrite psoriásica
É uma forma de artrite que afeta pessoas que possuem psoríase. Homens e mulheres são afetados igualmente. Existe um componente genético que provoca o desenvolvimento da doença em, aproximadamente, 50% dos irmãos de pessoas com esta doença quando ambos os pais são afetados; em 16% quando somente um pai tem psoríase; e em 8% quando nenhum dos pais é afetado. Área do corpo afetada: lesões na pele, joelhos, cotovelos e couro cabeludo. Sintomas: lesões avermelhadas, escamosas e artrite (inflamação das articulações).
- Artrite reumatoide
Doença inflamatória crônica que acomete as mulheres duas vezes mais do que os homens, em torno dos 30 e 40 anos. Área do corpo afetada: articulações e, menos comumente, outros órgãos ou tecidos como a pele, unhas, músculos, rins, coração, pulmão, sistema nervoso, olhos e sangue. Sintomas: dor, edema, calor e vermelhidão em qualquer articulação do corpo, sobretudo mãos e punhos. As articulações inflamadas provocam rigidez matinal, fadiga e com a progressão da doença, há destruição da cartilagem articular, resultando em deformidades.
- Diabetes tipo 1
Acomete crianças e adultos jovens, mas pode ser desencadeado em qualquer faixa etária. Área do corpo afetada: pâncreas e a produção de insulina. Sintomas: sede, diurese e fome excessivas, emagrecimento, cansaço e fraqueza.
- Doença celíaca
É causada pela intolerância ao glúten, proteína encontrada no trigo, na aveia, na cevada, no centeio e seus derivados, provocando dificuldade do organismo de absorver os nutrientes dos alimentos, vitaminas, sais minerais e água. Os sintomas, em geral, aparecem entre os seis meses e dois anos e meio de vida. Área do corpo afetada: trato gastrointestinal. Sintomas: diarreia ou prisão de ventre crônica; dor abdominal; inchaço na barriga; danos à parede intestinal; falta de apetite; baixa absorção de nutrientes; osteoporose; anemia; perda de peso e desnutrição.
- Doença de Crohn
É uma doença inflamatória que ataca o trato gastrointestinal. Área do corpo afetada: parte inferior do intestino delgado (íleo) e intestino grosso (cólon), mas pode afetar qualquer parte do trato gastrointestinal. Sintomas: diarreia, cólica abdominal, às vezes febre, sangramento retal, perda de apetite e de peso.
- Doença de Graves
É uma doença que gera uma anomalia no funcionamento da glândula tireoide. Área do corpo afetada: glândula tireoide, olhos e pálpebras. Sintomas: hipertireoidismo —produção excessiva de hormônios pela glândula no sangue—, aumento da tireoide e irritações nos olhos e pálpebras.
- Esclerose múltipla
Doença neurológica crônica que afeta jovens entre 20 e 40 anos de idade, com predomínio feminino. Área do corpo afetada: o cérebro, o tronco cerebral, os nervos ópticos e a medula espinhal. Sintomas: fadiga intensa, depressão, fraqueza muscular, alteração do equilíbrio da coordenação motora, dores articulares e disfunção intestinal e da bexiga.
- Lúpus eritematoso sistêmico
Doença inflamatória crônica com ocorrência em pessoas de qualquer idade, principalmente entre 20 e 45 anos, com maior acometimento entre as mulheres. Área do corpo afetada: pele, olhos (fotossensibilidade), cabelo, articulações —mãos, punhos, joelhos e pés—, pulmões, coração, rins, sangue e sistema nervoso. Sintomas: desde os mais genéricos, como febre, emagrecimento, perda de apetite, fraqueza, desânimo e queda de cabelo, aos específicos de cada órgão como dor nas juntas, manchas na pele, inflamação da pleura, hipertensão e/ou problemas nos rins.
- Síndrome de Sjogren
Doença caracterizada pela secura ocular e da boca. Acomete mais mulheres de meia-idade, mas também homens e em qualquer idade. Manifesta-se isolada ou acompanhada de outra doença autoimune. Área do corpo afetada: boca, olhos, pele, nariz, vagina e outros órgãos do corpo, como os rins, pulmões, vasos, fígado, pâncreas e cérebro. Sintomas: olho seco ou boca seca, fadiga, dor (artralgias) e inflamação (artrites) nas articulações.
- Tireoidite de Hashimoto
Provoca a diminuição dos hormônios tireoidianos e é de cinco a oito vezes mais frequente em mulheres. Área do corpo afetada: tireoide. Sintomas: aumento de peso, cansaço, prisão de ventre, inchaço no pescoço, dores musculares ou articulares, cabelo e unha fracos, entre outros.
Fontes: Isabella Vargas de Souza Lima, médica reumatologista do Hupes (Hospital Universitário Professor Edgard Santos), em Salvador, e professora adjunta da UFBA (Universidade Federal da Bahia Hupes); Ricardo Xavier, médico reumatologista, especialista em genética das doenças reumáticas inflamatórias e autoimunes, presidente da SBR (Sociedade Brasileira de Reumatologia) e professor titular da faculdade de medicina da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul); e Simone Appenzeller, médica reumatologista e professora Associada de Reumatologia da FCM (Faculdade de Ciências Médicas) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Referências: ABCD (Associação Brasileira de Colite Ulcerativa e Doença de Crohn); ABEM (Associação Brasileira de Esclerose Múltipla); SBD (Sociedade Brasileira de Dermatologia); SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologia Metabólica) e SBR (Sociedade Brasileira de Reumatologia).
Fonte: Viva Bem Uol.