É como se os doentes fossem traídos pelo próprio sistema imunitário. Muitas vezes, ao enfrentar ameaças externas o organismo ataca órgãos internos e surgem graves problemas de saúde. É o que sucede com certas doenças reumáticas, como artrite reumatoide, espondilite anquilosante e artrite psoriática, mas também noutras como o lúpus, a diabetes ou a doença celíaca. São dezenas e só as doenças reumáticas autoimunes, por exemplo, afetam cerca de 3% da população adulta portuguesa, garantem Marlene Sousa e José António Pereira da Silva, do Serviço de Reumatologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, que explicam tudo sobre estas doenças.
O que são doenças autoimunes?
São distúrbios causados por uma disfunção do sistema imunológico que passa a atacar tecidos e órgãos do próprio hospedeiro com os meios que normalmente usa para nos proteger de invasores (bactérias e vírus) e de células próprias anormais (cancro). Todos somos portadores de alguma autoimunidade. Em condições normais, este processo está sob controlo e a autoimunidade é mantida a um nível suficientemente baixo para não causar dano. Quando este controlo é ultrapassado surge a doença autoimune.
Os mecanismos que originam estas doenças ainda estão a ser investigados, mas sabe-se que estão relacionados com fatores genéticos e ambientais
Quantas doenças autoimunes há?
São mais de 80 as doenças puramente autoimunes e ainda maior o número daquelas em que a autoimunidade é um fator contribuinte. Distinguem-se dois grandes grupos, consoante a autoimunidade é específica de órgãos (diabetes mellitus tipo 1, tireoidite, hepatite, encefalite, esclerose múltipla, anemia imunohemolítica, entre outras) ou é capaz de afetar múltiplos órgãos e sistemas, em que se destacam as doenças do foro reumatológico como o lúpus eritematoso sistémico, a esclerose sistémica progressiva e as miosites, entre outras.
Os mecanismos autoimunes são tão disseminados e as suas consequências tão variadas que não cabem em nenhuma especialidade ou subespecialidade médica. Há mesmo quem defenda, com algum fundamento, o aforismo de que “todas as doenças são autoimunes, até prova em contrário”.
Quais as doenças autoimunes mais comuns?
Num estudo desenvolvido pela reumatologia nacional entre 2011 e 2013, concluiu-se que o conjunto das doenças reumáticas autoimunes afeta cerca de 3% da população adulta portuguesa. Incluem-se neste grupo a artrite reumatoide, espondilite anquilosante, artrite psoriática, lúpus eritematoso sistémico e outras doenças difusas do tecido conjuntivo. A diabetes mellitus tipo 1, caraterizada por ser dependente de insulina, é uma das doenças autoimunes mais comuns, com uma prevalência estimada em Portugal, em 2015, de 0,2% entre os jovens com menos de 20 anos. Também relativamente comuns são a esclerose múltipla, uma doença neurológica, as doenças inflamatórias intestinais e as doenças da tiroide, como a doença de Graves e a tireoidite de Hashimoto. A doença celíaca (intolerância ao glúten), a anemia perniciosa e a miastenia gravis estão também entre as doenças autoimunes mais frequentes.
Quais são as causas?
Os mecanismos que causam as doenças autoimunes não estão totalmente esclarecidos e variam de uma doença para outra. De um modo geral, aponta-se para uma etiologia multifatorial, com contribuição de fatores genéticos e ambientais, como a exposição ao fumo do tabaco, radiação ultravioleta ou micro-organismos infeciosos. A predisposição genética é um fator importante, mas não suficiente: os familiares de portadores de uma destas doenças têm maior tendência a desenvolver uma doença idêntica ou outra de tipo autoimune, mas a prevalência continua baixa, mesmo nesse grupo.
Os médicos lembram que apesar de não haver cura, há tratamentos “cada vez mais sofisticados e eficazes, capazes de oferecer excelente qualidade de vida e sobrevida”
As doenças autoimunes têm cura?
Não há cura definitiva para qualquer das doenças autoimunes. Ou seja, são doenças crónicas. Contudo, existem, para todas, tratamentos cada vez mais sofisticados e eficazes, capazes de oferecer excelente qualidade de vida e sobrevida. A sobrevida aos 5 anos para o lúpus eritematosos sistémico, por exemplo, aumentou de menos de 50%, antes de 1955, para mais de 95%, em anos recentes.
Como se faz o diagnóstico de uma doença autoimune?
Tudo deve partir do reconhecimento de um padrão de sinais e sintomas sugestivos de uma ou mais destas doenças. Com base nas hipóteses diagnósticas assim geradas, o médico seleciona exames complementares de diagnóstico que, entre outros, deverão incluir a pesquisa de autoanticorpos, como os anticorpos antinucleares (ANA), o fator reumatoide (FR), a imunoglobulina estimulante da tiroide (doença de Graves) ou os anticorpos antigliadina, na doença celíaca. As manifestações clínicas e os achados laboratoriais são tão variados que não tem cabimento suspeitar de que se trata de “uma doença autoimune”, sem especificação, nem que se peçam baterias extensas de autoanticorpos.
Como se trata estas doenças?
O tratamento depende dos órgãos acometidos e da gravidade deste acometimento. Nalguns casos, o tratamento atual limita-se à compensação da função deficiente, como no caso da diabetes e do hipotireoidismo. Noutros, procura-se o controlo do processo inflamatório que conduz aos sintomas e danos irreversíveis. Usam-se, para esse fim, os corticosteroides e vários outros moduladores do sistema imune, como o metotrexato e a hidroxicloriquina. Nos últimos anos, a biotecnologia desenvolveu agentes muito específicos e eficientes, também eles de base imunológica, com destaque para os anticorpos capazes de modular ou controlar o processo de autoimunidade. Em casos extremos, pode proceder-se ao transplante de medula que equivale à substituição completa do sistema imunológico defeituoso.
Artigo publicado na VISÃO Saúde nº17 (Abril/Maio 2021)
Fonte: Sapo – Visão Saúde.